Introdução: Eleutério F. S. Prado
Como se sabe, é urgente uma renovação do projeto político do socialismo democrático, um projeto que deixe para trás os socialismos autoritários do século XX, alguns dos quais resistem ainda no tempo. Com esse fim, alguns autores, raros ainda, estão trabalhando para unir a crítica da economia política com uma crítica da economia pulsional dos indivíduos sociais, especialmente, sob as condições do capitalismo. Trata-se de um esforço para unificar as críticas sociais de Karl Marx e Sigmund Freud por meio de uma integração conceitual, não por mera junção externa, algo que ainda não havia sido feito.
Um deles é o autor do livro Gozando com o que não se tem – o projeto político da psicanálise (Enjoying we don’t have – the political Project of psychoanalysis, 2013), do qual que foi traduzindo o excerto abaixo. Esse recorte foi escolhido porque ele sustenta que a “psicanálise é fundamentalmente uma teoria econômica da psique”. Eis que o trabalho – mesmo com sentidos distintos – encontra-se no núcleo do modo de ser do sistema econômico e o do sistema psicológico. Assim como o a captura do trabalho define a economia política, a captura da pulsão define a economia pulsional.
Sim, podemos obter satisfação
Autor: Todd McGowan
A dimensão política da psicanálise ganha um foco melhor quando a entendemos como uma teoria econômica. Embora Freud, às vezes, tenha apresentado as suas ideias em termos econômicos, ele não torna a economia do pensamento psicanalítico totalmente explícita. Mesmo assim, a economia está aí presente; ela está presente, como explicação, nos princípios fundamentais da psicanálise.
A economia da psicanálise enfatiza, em contraste com a economia do capitalismo, a capacidade de encontrar satisfação em nossa pulsão, em vez de buscar a satisfação final em outro lugar. É uma economia que renuncia a qualquer forma de acumulação ou realização. Encontrar a satisfação em nossa pulsão nos livra da insatisfação associada à tentativa de atender às demandas sociais, qualquer que seja a forma que assumam. Às vezes, as autoridades sociais exigem que obedeçamos ou nos conformamos, enquanto outras vezes exigem que consumamos ou expressemos nossa individualidade. Em qualquer caso, tais demandas e nossa adesão a elas levam inevitavelmente à insatisfação.
Tentamos adquirir dessa forma um objeto ou uma sensação de reconhecimento que é impossível de obter. Além do mais, essa busca nos deixa dependentes da autoridade social que faz as demandas. Desse modo, a estrutura econômica do capitalismo e a busca incessante de acumulação que ele obriga correspondem à dependência do sujeito ao poder da autoridade social.
A psicanálise prevê uma ruptura com a acumulação e com a dependência. O projeto político da psicanálise prevê um afastamento da busca pela satisfação final localizada em outro lugar – ou seja, na acumulação – para o gozo, um desvio que se tornou possível repensando onde se encontra de fato o nosso gozo. De acordo com a economia psicanalítica, o gozo está localizado naquilo que nos perturba – e não naquilo que podemos obter. Quando entendemos isso, mudamos a natureza de nossa subjetividade política. O obstáculo ao nosso prazer é, ao mesmo tempo, a fonte do nosso prazer, não o que devemos eliminar para descobrir a satisfação final.
A ideia de uma economia da psique está subjacente ao trabalho de Freud ao longo de toda a sua carreira; contudo, ela se torna mais explícita em um trabalho bem inicial, o inacabado Projeto para uma psicologia científica de 1895. Neste manuscrito, Freud tenta explicar os processos psíquicos de acordo com uma modelo mecânico, um modelo que minimiza os efeitos da consciência quase completamente. Embora muitos pensadores, psicanalistas bem informados, contestem essa teoria de Freud por causa de sua natureza estritamente fisiológica, pode-se traduzir a teoria fisiológica de Freud em uma teoria psíquica.
No Projeto, Freud vê a psique como um sistema projetado para descarregar energia psíquica que é transmitida através dos neurônios. A energia bombardeia a psique de dentro e de fora – por meio de forças endogâmicas e estímulos externos. Nesse ponto de seu pensamento, Freud acredita que o objetivo da vida psíquica envolve o retorno a um nível zero de excitação, objetivo que ele posteriormente vai chamar de princípio do prazer. Ao afastar a excitação, os processos psíquicos libertam a psique do desprazer e a devolvem a um estado de satisfação.
Depois que Freud concebeu a pulsão de morte, em 1920, sua concepção de satisfação passou por uma mudança fundamental. Na visão do Projeto e em seus outros trabalhos anteriores a 1920 (que veem a psique apenas em termos do princípio do prazer), a satisfação é um estado ao qual a psique chega por meio da descarga da excitação. Porém, após a descoberta da pulsão de morte em Além do Princípio do Prazer, a satisfação consistirá no movimento da própria pulsão, não no objetivo que ela atinge. No entanto, o que permanece constante nesses dois modelos econômicos diferentes é a absoluta primazia psíquica da satisfação. A psique se esforça acima de tudo para manter sua satisfação e em ser bem-sucedida no fazê-lo.
A satisfação ocorre nas operações da psique porque, como Freud a vê em 1895, a descarga da excitação sempre ocorre. Embora haja infinitas diferenças entre os sujeitos individuais, podemos dizer que todos os sujeitos são sujeitos satisfeitos na medida em que participam do processo de descarregar a excitação contida na subjetividade. Para cada sujeito, esse processo tem de ocorrer com sucesso, mesmo que por um caminho tortuoso na psique. A diferença individual se manifesta em diferentes caminhos psíquicos, mas não no fato fundamental de que a excitação precisa ser descarregada.
Ou seja, o que a psique faz é universal, mas a maneira como ela faz isso varia em cada caso particular. A universalidade do modo de proceder da psique permite a Freud reconhecer que a economia da psique produz satisfação para todo sujeito, mesmo que o sujeito não tenha consciência dessa satisfação. Isso permanece verdadeiro quando Freud passa do modelo de 1895 da psique para o último centrado na pulsão de morte, embora na teoria posterior a satisfação derive da força constante da pulsão, e não de uma descarga de excitação. O impulso pulsional nunca desiste em obter satisfação; esta é inescapável.
Quando pensamos em qualquer tipo de terapia, incluindo a psicanálise, geralmente pensamos em uma trajetória que vai da insatisfação a algum grau de satisfação. Os sujeitos iniciam a terapia com uma doença psíquica que causa insatisfação e, se o tratamento for bem-sucedido, eles saem com a capacidade de levar uma existência mais satisfatória. Se os sujeitos não sentissem insatisfação, não iniciariam nenhuma terapia e, se não obtivessem alguma satisfação como resultado, a terapia deixaria de ser uma prática viável.
Mas, apesar de sua aparência de senso comum, esse modelo não se aplica à terapia psicanalítica – ou, melhor, a psicanálise não é terapia nesse sentido. Em vez de efetuar uma mudança qualitativa no sujeito, transformando a insatisfação em satisfação, a psicanálise tenta intervir – e encontra a justificativa para sua intervenção – em um nível quantitativo. Em vez de tentar curar sujeitos insatisfeitos, a psicanálise se defronta com sujeitos satisfeitos. Ocorre que alguns despendem muito esforço psíquico, seguem um caminho tortuoso demais para obter satisfação. Nesse sentido, a psicanálise é fundamentalmente uma teoria econômica da psique.
A pulsão de morte e a repetição que ela instala no sujeito seguem pelo curso da obtenção de autossatisfação. A pulsão de morte encontra um caminho para a satisfação (ou gozo) apesar – ou por causa – de quaisquer obstáculos que o mundo externo possa erguer. A satisfação do sujeito é a única constante do pensamento psicanalítico; por isso, Freud foi levado a postular a existência da pulsão como fonte de satisfação. A satisfação que a pulsão de morte produz origina-se de sua estrutura circular: em vez de tentar atingir a satisfação por meio de um objetivo externo, a pulsão produz essa satisfação pelo próprio processo do movimento repetido.
A qualidade de autossatisfação da pulsão a diferencia da necessidade fisiológica: as necessidades variam de um estado de insatisfação para um de satisfação quando atingem seu objetivo. A direção, por outro lado, nunca muda. Ao contrário da necessidade biológica (que pode ser satisfeita ou não, dependendo se ela descobre seu objeto), a pulsão (que tem um objeto ausente) sempre envolve satisfação. Assim, a psicanálise, prática orientada em torno da pulsão, não pode intervir oferecendo uma satisfação perdida ou dando uma mãozinha a quem está em apuros.
A intervenção psicanalítica deve ser estritamente econômica, ou seja, deve envolver a quantidade de esforço psíquico despendido pelo analisando. O objetivo do psicanalista – o desejo do analista – deve ser remover os desvios que o analisando colocou ao longo do caminho da pulsão – a fim de permitir que o analisando assuma completamente sua posição na pulsão.
No Seminário XI, Lacan expõe a situação com que se defronta o analista: “O que temos diante de nós na análise é um sistema em que tudo dá certo e que atinge sua própria espécie de satisfação. Se interferimos nisso, é apenas na medida em que pensamos que existem outras formas, mais curtas, por exemplo”. Ao se submeter à análise, o analisando se submete, ainda que sem saber, a esse desejo de encurtar ou economizar o caminho da pulsão. Esse encurtamento é a cura analítica. E Freud foi o primeiro a entendê-la como tal no Projeto de 1895, onde enfatiza os custos dos desvios psíquicos que o sujeito erige para o fluxo da energia psíquica.
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