As três feridas narcísicas para Freud.
Em Psicanálise, o narcisismo é o amor exacerbado por si mesmo. O termo se inspira no mito de Narciso, personagem da mitologia grega que se apaixona por sua própria imagem refletida na água e se afoga.
O amor por si mesmo é um aspecto importante do ego. Sem um ego suficientemente fortalecido, não haveria autoestima e não distinguiríamos nossa psique em relação ao restante da natureza. É o exagero narcísiso que é o perigo, por aprisionar a pessoa em sua autoverdade, impedir a empatia, a autocrítica e o aprendizado.
Quais são as três feridas narcísicas da humanidade?
No seu curto texto “Uma dificuldade no caminho da psicanálise” (1917), Sigmund Freud menciona três feridas narcísicas da humanidade. Freud denominou assim três importantes momentos em que a ciência “destronou” o ser humano de uma autoimagem mais grandiosa e onipotente. A Psicanálise seria responsável pelo terceiro destes momentos.
Assim, o ser humano, embora seja o animal racional capaz de elaborar essas teorias, se vê como alguém não tão especial assim, sob certos aspectos.
Os escritos de Freud certamente mobilizaram a sociedade de sua época na direção da ruptura de paradigmas tão estruturados quanto o próprio contexto histórico vivido na transição entre os séculos XIX e XX. Pelas palavras do próprio autor, a Psicanálise constituiria a terceira ferida narcísica da humanidade.
Freud valoriza essas teorias (a terceira, inclusive, é a própria teoria psicanalítica) como fatos importantes para o conhecimento sobre a própria condição humana.
Vejamos quais sejam essas feridas:
Primeira Ferida Narcísica
A partir dos estudos de Nicolau Copérnico e da astronomia moderna, pode-se ter o entendimento de que a Terra, e simbolicamente o homem, não é o centro do universo, como se acreditava até então.
Assim, fere-se o ego humano ao se constatar que o planeta em que o ser humano vive é parte de um Universo muito maior e multicentralizado em galáxias e sistemas.
Segunda Ferida Narcísica
Segundo a teoria da evolução das espécies de Charles Darwin, o ser humano é uma parte da evolução das espécies. A constituição física do ser humano se assemelha com a de outras espécies (por exemplo, em relação aos órgãos existentes e à simetria corporal), o que permitiu a Darwin a construção da teoria da existência de espécies em comum, há milhões de anos se desenvolvendo pela mutação e pela seleção natural.
Assim, o ego humano é ferido: embora seja a espécie que alcançou uma evolução racional, ainda assim o ser humano é uma espécie animal, com história, órgãos e mortalidade semelhantes a de outros animais.
Terceira Ferida Narcísica
A terceira ferida narcísica, segundo Freud, é de natureza psicológica, isto é, retira do pedestal a ideia de que o humano tem controle sobre sua vida psíquica. O filósofo (Santo) Agostinho já dizia que não há nada mais perto de mim do que eu mesmo; no entanto, não há nada que eu desconheça mais do que a mim mesmo.
Em suma, o texto de Agostinho (separado por séculos de Freud) guarda a mesma ideia freudiana da terceira ferida narcísica. Não há nada com que o ser humano conviva mais do que consigo mesmo. Aliás, o ser humano “é” essa própria experiência psíquica, ou seja, só por esta autopercepção psíquica ele pode afirmar “quem sou” e pode conhecer o mundo. Mas não poderá conhecer nem dominar por completo sua natureza psíquica. Está imersa demais nela mesma, não consegue olhar-se “de fora”, pois não há um “de fora”.
Podemos dizer que a terceira ferida narcísica da humanidade é a própria Psicanálise, o que ela nos traz. A partir da construção conceitual do inconsciente, Freud sugere que as ações do homem são fortemente influenciadas por uma instância que foge ao controle do entendimento racional e, que em si, apresentam características primitivas.
Ou seja, nossas pulsões e desejos são, em certa medida, animalescos, não racionais. E nossos atos não se exercem sempre de forma consciente. Isso se pode ver inclusive pelo aspecto das ciências sociais: os atos humanos produtivos, culturais e ideológicos são transmitidos de uma geração a outra, de modo que a geração atual não tem uma consciência completa de escolha.
Na perspectiva da psicanálise, o ser humano não é um indivíduo (isto é, um não-dividido). O ser humano é dividido, sendo que não tem pleno controle de todos os seus afetos, medos, impulsos e desejos. Sua mente tem uma imensa porção não consciente, assim como um iceberg esconde a maior parte de si dentro da água.
Escreveu Freud:
Essas duas descobertas – a de que a vida dos nossos instintos sexuais não pode ser inteiramente domada, e a de que os processos mentais são, em si, inconscientes, e só atingem o ego e se submetem ao seu controle por meio de percepções incompletas e de pouca confiança […] representam o terceiro golpe no amor próprio do homem, o que posso chamar de golpe psicológico. (Freud, Uma dificuldade no caminho da psicanálise, 1917) |
É importante posicionar que Freud não era um irracionalista: era um sujeito da ciência e conhecedor do discurso científico. Mas Freud tinha uma diferença com o racionalismo moderno, no sentido de não conceber uma razão absoluta (muito menos metafísica) para a compreensão do humano.
Entenda “racionalismo” como uma linha filosófica que se fortaleceu na Idade Moderna (por exemplo, com Descartes). Podemos opor o racionalismo ao empirismo (por exemplo, de Humes), que defendia a ideia de que os sentidos e a experiência formavam o humano.
Talvez seja possível aproximar Freud mais do empirismo do que do racionalismo, mais de Humes/Aristóteles do que de Descartes/Platão, embora Freud não adote a ideia (querida do empirismo) de que o ser humano seja uma “tábula rasa”, exatamente porque o ser humano possuiria (segundo Freud) um aparelho psíquico inato (isto é, originário desde seu nascimento), do que são exemplos as pulsões.
De acordo com a terceira ferida narcísica (trazida pela psicanálise), aquilo que mais valorizamos e que nos diferencia de outras espécies (a racionalidade) é apenas parte da mente humana. A grande parte de nossa mente e a que mais nos define não seria racional, não seria acessível à razão consciente.
Isso de certa forma fere o ego humano, por valorizar uma parte não racional e não consciente da nossa condição.
Esta análise de Freud sobre as feridas narcísicas da humanidade é um exemplo de sua psicologia social. Ou seja, é um exemplo da psicanálise aplicada à interpretação das relações interpessoais e sociais. Afinal, Freud aplica o conceito de narcisismo, costumeiramente usado para a caracterização de um sujeito, para usá-lo também com uma ideia de consciência coletiva compartilhada historicamente.
Este artigo sobre as três feridas narcísicas segundo Freud e a Psicanálise foi escrito por Paulo Vieira, gestor de conteúdos do Curso de Formação em Psicanálise Clínica.
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